sábado, 2 de outubro de 2010

COMO MATAR GENTE LEGALMENTE ou MEU VELHO CACHORRO





Qual a idade do cachorro? Ninguém se lembra, uns dizem que foi há dez anos, outros cinco, outros quinze, outros dizem que o cachorro chegou antes do nascimento do neto. Enfim, o cachorro está velho, o pobre do NECO está sem enxergar, come pouco, pêlo caindo, geme muito e está gordo.

Se levou ao veterinário e ele afirma que assim mesmo, o animal tem “vida útil” e que na velhice isso é “comum”. Indica medicamentos e acompanhamento. Não pode mais dar determinados tipos de alimentos e nem permitir determinados comportamentos. Levar para passear ,só em redor da casa, pois o coração pode não agüentar. Refrigerante com cerveja e água, nunca mais, pois o fígado está em frangalhos.

E olha que o NECO adorava essa mistura, principalmente nos finais de semana, depois do churrasco semanal.

Correr atrás da bola?Nunca mais, não jogues bola para ele, corre o risco de ser atropelado e vicia, vai querer correr atrás da bola toda hora, pois depois de velho, tem que ter uma mania.

Colocar em um canto, dar alimentos, atenção e carinho e esperar a hora da morte. Ou então, sugere, sacrifique, a gente dopa, ele dorme, morre sem sentir, é melhor.

Não é que todo mundo concorda? A esposa acha ótimo pois assim ele não fica “sofrendo”, a sala não fica com fedor de xixi de cachorro, as poltronas não ficam com pêlo, tudo sujo... sem cachorro, sem fedor, a empregada não reclama e a gente economiza nas compras e nos remédios.

O filho fica neutro, mas concorda, afinal é alérgico a pêlos, diz ele, fungando.Funga quando vê formiga, quando sente cheiro de gato e de cachorro, diz.

A filha acha ótimo, pois o NECO não mais latirá para os amigos, os amigos poderão freqüentar a casa, não será mais mordida quando bater no NECO, enfim, a solução está dada.

Eu, como fico?

Gosto de ficar em casa com o cachorro, é minha desculpa para não ir para a rua; é a minha desculpa para não receber ninguém em casa, o cachorro é brabo; gosto de sair para passear com ele; gosto que ele suba na cama; gosto de dar banho nele; gosto de escova-lo; gosto de falar com ele....

Mas, a familia?

Não se pode brigar com a esposa, pois ela é quem vai cuidar da gente quando ficar velho, ela quem pode acobertar os nossos deslizes, ela que pode infernizar a vida da gente. Os filhos, idem, se ficar viúvo – Deus não queira, quero ir antes dos cachorros, dos demais animais, da esposa, dos filhos – quem vai cuidar da gente são eles, em caso contrário podem nos jogar em um asilo ou sabe lá o quê. Tens-se que ir com os outros, guardar os sentimentos, controlar a raiva, esconder a mágoa e concordar.

O veterinário – que se diz médico – me sugere uma ação bastante conhecida. Agora temos UTI animal, a gente coloca o NECO lá, mais repousado, mais equipado. Quando adoecer, traga. Uma enfermeira – na verdade uma técnica em enfermagem – me chama e diz: deputado, a gente coloca lá, depois de uma semana eles dizem que o animal tem problemas de pulmão (pneumonia pequena), enchem de antibiótico; aí dizem que os rins não estão respondendo; depois vem a infecção generalizada; aí sugerem desligar os aparelhos para uma morte mais digna, sem sofrimentos.É a morte legalizada.

Fico pensando.

Ninguém pensa na alma do animal. Os olhos são espelhos da alma, o cachorro me olha com olhos de gente, com alma. Ninguém se lembra de quando chegou em casa? Pequeno, peludo, lambendo a todos e todos contentes? O tempo que fez companhia com os meninos quando pequenos? Correndo atrás da bola, brincando? O tempo que gastou protegendo a casa, latindo para todos? Os ladrões que botou para correr?

A companhia que nos fez? Os carinhos e carícias mútuas? Ninguém se lembra?

Parece que o conforto, a comodidade, a juventude, o novo, o imediatismo, são conceitos que se incorporaram definitivamente ao estilo de vida atual, ninguém quer lembranças, memórias, passado, velhice. O que vale é o atual, agora.

No agora, fico agora chorando, lembrando-me que essas reflexões reais, sob forma de ficção, foram feitas inspiradas no poema/conto de meu irmão Melquisedeque Viana, o Deque, nos anos 60/70. Bons tempos, que eu me lembre sempre.

Meu cachorro velho.... não tenho mais palavras!

Obrigado por tudo!

É preciso apender a ser só! E aprenderei, magoado, contido, mais triste, menos sociável.... mais viverei....e me lembrarei...

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